domingo, 17 de março de 2013

Em suspensão


   2013 aos moldes de 1963. Esse é jeito mais sucinto (e, possivelmente, mais óbvio) de descrever o disco de estreia do holandês Jacco Gardner. Natural de uma cidade a 40 minutos ao norte de Amsterdam, Gardner define-se em seu site oficial como um “multi-instrumentista de pop barroco, responsável por criar um som único, derivado de combinações entre cravo, cordas, flautas e outros instrumentos clássicos com efeitos psicodélicos”. Tal perfil pode até soar pretensioso vindo de um rapaz de 24 anos cujo corte de cabelo é semelhante ao de Brian Jones. Mas há um vasto rol de influências que faz com que Cabinet of Curiosities seja o que é.
   Através de “Clear The Air”, a primeira faixa, o ouvinte é tragado para o interior de um caleidoscópio musical ambientado na fértil década de 1960. As técnicas de estúdio permeadas por camadas sonoras permitem a realização dessa agradável viagem a uma época que deu à luz a legítimos gênios da música, como Syd Barrett, Brian Wilson e Van Dyke Parks. A princípio, Gardner aparenta ser o resultado de uma mistura heterogênea de Beatles e Barrett (a lírica introspectiva de “The Ballad Of Little Jane”, faixa que encerra o álbum, e os graves vocais que remetem ao ex-líder do Pink Floyd servem para comprovar essa hipótese).
   A nostálgica “The One Eyed King” distingue-se de sua antecessora por conter uma singela melodia coroada por letras que acompanham a apatia da fog londrina – Sitting by the old road again. Waiting for a letter, for a friend. Batidas amortecidas por um baixo hipnótico introduzem “Puppets Dangling” que, em algum instante a partir do segundo refrão, adquire sonoridade similar a de “See-Saw”, do já mencionado grupo de Cambridge. Ou talvez seja só impressão. 
       É comum que ecos atuem como suporte aos vocais, conforme é verificado em “Watching The Moon”, a qual constrói um macabro carrossel sobre u m andamento regular. Gravações de risadas de bebês e um interessante arranjo para órgão povoam a faixa-título, um instrumental de quase três minutos de duração que soa como se viesse de debaixo da terra. 
       A maioria das músicas prestigia temas redundantes, de modo que Gardner não se desgasta em esforços para abandonar a zona de conforto delimitada pela abastada herança imaginativa do rock psicodélico. A finalização abrupta  de “Riddle” ameaça a onírica “Lullaby”. O trabalho logo começa a dar sinais de cansaço, e faixas que funcionariam muito bem em contextos independentes, como “Help Me Out” e “Summer’s Game”, parecem se arrastar.  
      Cabinet of Curiosities é um álbum enganado pelo tempo que, certamente, irá satisfazer os ouvidos de vários apreciadores das quimeras do circuito alternativo que, por um motivo ou outro, não desejam se perder em experimentalismos arriscados e inovações intimidadoras.




sábado, 2 de março de 2013

A efemeridade do tempo



   “História é aquela certeza fabricada no instante em que as imperfeições da memória se encontram com as falhas da documentação.”


   Tanto quanto a citação acima – atribuída a um autor fictício de nome Patrick Lagrange, pronunciada numa das passagens do livro – quanto a declaração de Tony Webster acerca do que difere a juventude da velhice – “(...) quando somos jovens, inventamos diferentes futuros para nós mesmos; quando somos velhos, inventamos diferentes passados para os outros.” – serviriam de epígrafe para esse sensível romance do britânico Julian Barnes, vencedor do Man Booker Prize de 2011. 
   O sentido de um fim é um tratado eloquente  sobre a fragilidade da memória, a perseverança de nossos ideais e o poder do tempo em nossas vidas. 
   Em cerca de 160 páginas, o personagem Anthony Webster conta a própria trajetória, desde o período escolar até a terceira idade. Divorciado, distante da filha e dos netos, careca e aposentado, descobre que a mãe de Veronica Ford, sua namorada na adolescência, acaba de falecer, deixando-lhe  uma herança simbólica no valor de 500 libras e um diário escrito por Adrian Finn, amigo dos tempos do colégio que cometera suicídio aos 22 anos.
   Todavia, a memória de Tony não é das melhores. Sua narrativa faz com que acontecimentos passados se mobilizem a fim de comportar opiniões e conceitos, em especial os que se referem à vida alheia. Em determinadas ocasiões, fatos surgem associados a imagens sensoriais, – o vapor que sobe quando uma frigideira quente é jogada dentro de uma pia molhada, um dos exemplos mais marcantes – que  aparentam ser muito mais consistentes e confiáveis do que a palavra dita – ou não dita.
   Anthony tenta, enquanto analisa a existência presente, reunir a sucessão de eventos que se inicia a partir do dia em que Adrian juntou-se a ele, Alex e Colin na sexta série. Seguem-se o ingresso na universidade, o primeiro contato com Veronica e o término do relacionamento, o namoro dela com Adrian, até a inesperada morte do amigo, ocorrida enquanto o protagonista viajava pelos Estados Unidos.
   Desde o princípio, ele destacara-se dos demais por estabelecer um tipo de contato muito mais complexo entre a interação que mantinha com outras pessoas e a realidade na qual vivia. Seus pensamentos fugiam ao senso comum. Finn era, de fato, muito mais inteligente do que Tony. Acima da média, em termos estatísticos. E é cruel constatar que a maioria de nós está condenada a fazer parte dela.
   Ao ser informado de que a mãe de sua ex-namorada havia lhe deixado o diário de Adrian, Tony dispõe-se a recuperá-lo. No entanto, ele não contava com o fato de que Veronica representaria um obstáculo implacável entre ele e o diário. Anthony fracassa inúmeras vezes na tentativa de decifrar a mulher que fora seu primeiro amor – e os sentimentos que ela procura esconder ao descuidar da aparência.
   O que se lê são profundos questionamentos que concernem o vazio existencial, a frustração de sonhos e planos que não se concretizam, a vida idealizada que fomos ensinados desde cedo a amar, a resposta que temos ao longo dos anos sob a forma de uma vida "automática" e a inevitável velhice, a "prova da sobrevivência". 
   O tempo, ora devastador, ora reparador, norteia todo o enredo, assim como refuta nossos julgamentos a respeito das decisões dos outros e deforma a compreensão que temos quanto a lances há muito ocorridos. A memória pode nos abandonar quando mais precisamos dela ou, quando não o faz, nos prega peças que muitas vezes não têm a menor graça.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Vida sem vida




   Existem inúmeras barreiras a serem transpostas na conversão de um livro em filme. Literatura e Cinema são artes distintas, logo, demandam a utilização de mídias diferenciadas a fim de que o conteúdo possa ser transmitido. Há cenas que não podem ser escritas e textos que não podem ser filmados. Alguns personagens são cortados, enquanto outros veem suas ações sendo transferidas para papéis de maior importância. As limitações originadas a partir desse inevitável (e nem sempre satisfatório) encontro geram uma adaptação cinematográfica que pode tanto potencializar o significado da obra literária quanto também empobrecê-lo. 



   A base em questão é o livro Trainspotting, do escritor escocês Irvine Welsh, levado às telonas em 1996 pelo cineasta cult Danny Boyle, responsável pelo premiado Quem Quer Ser um Milionário?, de 2008. Irreverente, sujo e polêmico, o romance conta a história de um grupo de amigos viciados em heroína que não veem sentido na vida regrada, previsível e repleta de obrigações que a maioria dos seres humanos almeja para si – “Choose us. Choose life. Choose mortgage payments; choose washing machines; choose cars (...)”. Como a edição brasileira, publicada pela Rocco, parecia estar com o estoque zerado nas livrarias, optei pelo original da Vintage. A vantagem de ler no idioma original é que a entendimento de determinadas palavras ou expressões não é comprometido por eventuais erros ou traduções precipitadas. De mais a mais, o processo de adaptação a outra língua é inerente à tradução, o que faz com que o texto se distancie das características do país onde foi escrito para acomodar a linguagem dos diversos locais onde ele será lido, ao redor do mundo. 

   Tive um pouco de receio a princípio ao constatar o uso indiscriminado que Welsh faz de gírias regionais, além da transcrição da pronúncia exata de cada palavra conforme o sotaque característico da Escócia, o que pode provocar certo estranhamento em um leitor menos acostumado. Sua escrita é estimulante e envolvente, e levar o livro do começo ao fim não é tarefa difícil. 
   Trainspotting  é composto por 7 partes, e cada uma delas contém um número variável de capítulos. Esses capítulos, por sua vez, são narrados por personagens diferentes que se alternam e, às vezes, por um narrador onisciente. As histórias podem ou não manter uma linearidade. 


   O protagonista é Mark Renton (no filme, interpretado por um ingênuo e vivaz  Ewan McGregor - sendo esta sua segunda parceria com Boyle desde Cova Rasa, de 1994). O foco principal se estabelece nas relações entre o jovem e o seu grupo de amigos, entre os quais foram contemplados com participações no longa, Sick Boy (Jonny Lee Miller), Spud (Ewen Bremner), Tommy (Kevin McKidd) e Begbie (Robert Carlyle). Para eles, a submersão no mundo das drogas é a única maneira de fugir ao paradigma do “cidadão comum”, ainda que deságue no destino – geralmente irreversível – da  autodestruição. Trata-se da década de 1990, os anos sombrios em que a Aids despontava como uma ameaça emergente, e o compartilhamento de agulhas multiplicava as chances de contaminação pelo vírus HIV. 

   As correspondências entre livro e filme são facilmente reconhecidas ao longo de uma hora e meia de projeção. A direção dinâmica de Boyle acrescenta cenas icônicas ao universo dessa relação, como a surreal viagem que Renton faz através do vaso sanitário do “Pior Banheiro da Escócia” em busca dos supositórios de ópio fornecidos por Mikey Forrester (o próprio autor, Irvine Welsh, em participação especial). Há ainda a sequência em que Mark se imagina dentro de um caixão e seu cortejo prossegue ao som de “Perfect Day”, de Lou Reed. Aliás, não faltam referências a astros do Rock, como Iggy Pop e David Bowie. O uso de estereótipos acerca do comportamento dos junkies não desgasta a temática abordada, tornando a película um dos mais competentes candidatos ao posto de “clássico moderno” – sem exageros. 



   Uma das marcas registradas dessa inesquecível turma é a frequente ida a bares e pubs , com brigas e discussões ocasionais, normalmente desencadeadas pelo encrenqueiro e asqueroso Begbie. Em uma dessas saídas, acompanhado de Spud, Mark Renton conhece Diane (Kelly Macdonald), uma colegial com quem inicia um caso. É interessante o grau de relevância que a personagem adquire no filme, já que no livro ela tinha sido relegada ao status de  “apenas mais uma garota” no círculo de relacionamentos do rapaz.  A duração do filme não foi suficiente para dar suporte ao desenvolvimento de mais personagens, que existem aos montes na obra de Welsh. Cada um deles é carismático em suas peculiaridades, o que torna quase real a convivência com o leitor. 




   Ao contrário do longa-metragem, o romance dedica maior atenção às crises familiares de Mark, como a morte de seus dois irmãos, com maior ênfase na de Billy, que até então servia ao exército. Embora o relacionamento dos dois não fosse dos mais exemplares, a dor de Mark se dá através de lacunas no pensamento e falhas na continuidade narrativa, com frases não concluídas. Ele procura permanecer frio e racional, avesso aos clichês que os parentes tanto apreciam cultivar após o falecimento do ente querido, desconstruindo a imagem representativa da pessoa em vida para dar lugar a uma figura idealizada, ilusória, enganosa. Ao longo do capítulo, Renton parece questionar: o quanto a morte é capaz de distorcer o legado de alguém?

   Alguns dos capítulos finais do livro concentram-se na visão de personagens coadjuvantes, que nem mesmo aparecem no filme, porém com ótimas histórias para contar. Uma lástima que nenhuma dela tenha tido a possibilidade de ser encaixada no roteiro. 
   A transformação que o protagonista sofre e que se concretiza ao final do livro/filme é um ponto crucial do enredo. A partir dela, Mark rompe com tudo aquilo que o estagnava e o prendia ao atraso (como a maioria de seus “amigos”, com exceção do quase inofensivo Spud), para dar início a uma nova vida, muito semelhante àquela que ele desprezava no começo. Essa escolha, que é mais uma questão de sensatez do que de moralidade, o leva a crer que a existência comum, antes tão repudiada e ridicularizada, não é tão sem sentido assim. 








sábado, 9 de fevereiro de 2013

Puro luxo


 
   Discordo de quem classifica o gênero musical de Lana Del Rey como indie. Ela pode perfeitamente ser considerada uma cantora pop. Afinal, o que faz um artista pertencer ao universo alternativo? Produzir um trabalho cuja estrutura não se enquadra nos padrões comerciais do mainstream? Dar um descanso a tantos ouvidos molestados pelas execuções incessantes dos hits indigestos que as rádios disponibilizam todos os dias? Contemplar um determinado grupo que precisa de suporte estético e cultural para enriquecer seu próprio estilo? E se esse artista se tornar extremamente conhecido fora desse círculo, ele deixará de ser alternativo?
   É difícil dizer. Na maioria dos casos, o êxito financeiro proporciona o amadurecimento técnico, que, por sua vez, facilita o entendimento da música por parte do grande público, tornando-a mais acessível para aqueles que não acompanharam a carreira da banda ou do(a) cantor(a) desde os primórdios. Ou então, utilizam-se ações de marketing para promover um nome até alçá-lo à posição de superstar  internacional. E é esse o caso que mais se adequa à realidade de Lana. 
   Nascida em junho de 1986 em Nova York  sob o nome de Elizabeth Woolridge Grant, a cantora teve seu nome artístico inspirado na combinação dos nomes da atriz Lana Turner (uma das mais bem pagas de Hollywood nas décadas de 1940 e 1950) e do carro Ford del Rey (suponho que seja o modelo que aparece ao fundo na fotografia de capa de Born to Die), detalhes essenciais para sua fabricação. A herdeira do milionário Robert Grant, entretanto, já havia investido na carreira musical, de modo não tão bem-sucedido, em 2010, com o lançamento digital do álbum de estúdio Lana Del Ray A.K.A. Lizzy Grant – com “a” mesmo em “Ray” – pela  gravadora independente 5 Points Records. O disco chegou a ser comercializado no iTunes, mas foi retirado depois de pouco tempo, já que o selo não tinha condições de promovê-lo. Dentre suas 13 faixas, inclui-se “Yayo”, que mais tarde seria regravada para preencher o repertório de Born to Die – The Paradise Edition. Após ter comprado os direitos, Lana admitiu ter interesse em relançar seu álbum “perdido” em breve. 
   Concebendo-se Born to Die como sua estreia oficial – esta sim, com o auxílio de uma grande gravadora – é possível chegar aos motivos que a transformaram em uma queridinha indie. A divulgação dos primeiros singles pelas rádios dos Estados Unidos e da Europa geravam uma expectativa crescente acerca do que viria dali em diante. “Video Games”, acompanhante das viagens de carro por ruas arborizadas e margeadas por resquícios de neve, é o equilíbrio perfeito entre uma letra bem escrita e uma bela orquestração. “Blue Jeans” evidencia as referências da jovem: final dos anos cinquenta e início dos anos sessenta, o cinema de Hollywood, especificamente James Dean, e ícones musicais como Elvis Presley e Nina Simone.  
   A faixa-título do álbum reforça as ótimas composições que a caracterizam, assim como seu alcance vocal e suas arriscadas mudanças das tonalidades graves para as mais agudas. Não creio que o mérito deva ser integralmente atribuído ao famigerado Auto-Tune. Com exceção da desastrosa performance no programa Saturday Night Live, comprometida devido ao nervosismo e à timidez, Lana Del Rey não costuma deixar a desejar ao vivo. 






   Com “Off to the Races”, é fácil imaginar o cenário opulento descrito em mais uma de suas criações, que contam com traços autobiográficos: a piscina de uma mansão cinematográfica de L.A., cigarros, drinks, cassinos, hotéis. É interessante também notar a evolução quanto ao culto à imagem: se, no início, seus clipes guardavam o suave sabor dos vídeos caseiros, a exemplo de “Video Games” e a primeira versão de “Blue Jeans”, agora, em “National Anthem”, passam a ser verdadeiras superproduções. A cantora se inspira em Marilyn Monroe ao recriar o famoso episódio no qual a atriz cantou “Parabéns pra Você” na comemoração do aniversário do então presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy, em 1962,no Madison Square Garden. "O dinheiro é o hino do sucesso", e só através dele há vida, luxos, sexo, excessos de álcool e drogas, morte. Ela não aparenta fazer esforço para se desvencilhar do estereótipo de garota rica e imoral.  É a partir daí que a pegada mais hip-hop ronda algumas das demais faixas, como “Dark Paradise”, “This Is What Makes Us Girls” e a adicional “Lolita” (equivocada leitura do romance de Nabokov), que parecem pertencer a um trabalho completamente diferente. É quase preocupante constatar a persistência de Lana nos arranjos orquestrais introdutórios, que deixam as músicas tão espontâneas quanto comerciais de bebida em locações paradisíacas. Isso fez com que seu nome fosse vinculado ao pop barroco, subgênero da música pop. Por outro lado, “Radio”, “Carmen” e “Million Dollar Man” (menção à Fiona Apple de Tidal) merecem destaque. 




   Já Born to Die – The Paradise Edition, seu mais recente disco, é um presente aos fãs, composto por 8 faixas inéditas. Aqui, ela revela mais segurança ao seguir uma linha melódica semelhante na maioria das canções. Eis que os elementos característicos são a cultura norte-americana, o espírito aventureiro de On The Road, homens mais velhos, rock’n’roll e sua interpretação para o clássico “Blue Velvet”. A polêmica “Cola” e seus dois primeiros versos flutuantes renderam a etiqueta “Parental Advisory: Explicit Content” no canto inferior direito da capa. A qualidade lírica, ainda que minimamente, parece ter sido relegada a segundo plano, porém,  resulta em faixas memoráveis, tais como “Ride”, “Body Eletric”, “Gods & Monsters” (por favor, não diga que você está vivendo como Jim Morrison) e “Bel Air” – o último resgate do vício das orquestrações artificiais de seu álbum anterior. 

   Acredito que Lana seja uma artista com potencial a ser desenvolvido e de ótimas influências  (Leonard Cohen, Janis Joplin e The Eagles são algumas delas) e escolhas sensatas. Pop, indie, alternativa ou não, espero que ela prossiga fazendo o que faz - de maneira ainda melhor. 







quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Se...



   If... (1968) é um drama britânico produzido e dirigido por Lindsay Anderson que retrata a vida dos estudantes de uma tradicional escola da Inglaterra exclusivamente para garotos em meados da década de 1960, marcada pelos movimentos de contracultura, muito fortes nos Estados Unidos, bem como pelas revoltas estudantis na França. O filme, premiado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1969, revelou o talento de Malcolm McDowell, que, mais tarde, se tornaria mundialmente famoso ao estrelar o clássico Laranja Mecânica (1971), de Stanley Kubrick. McDowell atuaria em outros dois filmes de Anderson, O Lucky Man! (1973) e Britannia Hospital (1982), ambos na pele do personagem Michael Travis. 
   O longa inicia-se com a chegada de um aluno novo ao colégio, Jute (Sean Bury), que,  em meio a diversas hostilidades reservadas aos calouros, é apresentado às instalações da instituição e às rígidas regras impostas. A prática de bullying é constante mesmo por parte daqueles que, por sua vez, se veem submissos ao comando dos mais velhos; responsáveis por monitorar os dormitórios, estabelecer punições de acordo com as faltas cometidas, proibir o consumo de bebidas alcoólicas e até de controlar o comprimento do corte de cabelo de cada um – longas madeixas eram interpretadas como um sinal de rebeldia. Os juniors são obrigados pelos alunos do último ano a desempenhar tarefas não remuneradas designadas aos serventes, como preparar chá, caracterizando a rigorosa hierarquia ainda existente em muitas dessas escolas. Os métodos ortodoxos de ensino incluem violentos castigos corporais sob a justificativa de “disciplinar, formar cidadãos dignos e homens bem-sucedidos em suas carreiras”, a participação obrigatória no coral da Igreja e nas demais cerimônias religiosas, infligindo à fé em Deus, além de humilhantes avaliações médicas - que incluem fileiras para o exame da genitália - às quais os recém-chegados são submetidos. 




   Michael “Mick” Travis, no primeiro dia de aula do ano letivo, surge de sobretudo, chapéu preto e um longo cachecol que recobre parcialmente o rosto com o intuito de esconder o bigode que ele havia deixado crescer durante as férias. A contragosto, Mick é forçado a raspá-lo, o que incita  ainda mais seu ódio contra uma opressão que aparenta não ter sentido algum. Ali, tudo é cronometrado: o tempo de higiene, a arrumação de pertences, os exercícios físicos...  Até mesmo os alimentos são meticulosamente racionados. As perversões dos funcionários da instituição não são ignoradas, a exemplo do capelão (também professor de geometria) que molestava os alunos durante as aulas. 



   Junto aos amigos Johnny (David Wood) e Wallace (Richard Warwick), Mick desenvolve um sentimento anárquico baseado na vontade de desconstruir as convenções já conhecidas, eliminar a injustiça e a covardia, o autoritarismo, a manipulação, a alienação perpetuada pelos mais fracos e a falta de liberdade. A solução à vista, para ele, é invocar a luta armada, evidenciada pela frase “One man can change the world with a bullet in the right place” (“Um homem pode mudar o mundo com uma bala no lugar certo”). O personagem de McDowell passa a ganhar cada vez mais destaque, seja pela insolência, pelo sorriso irônico ou pelos trejeitos que previam o inesquecível Alex DeLarge de Laranja Mecânica, hoje um ícone da cultura pop, levado às telas três anos mais tarde.  



   A insurreição dos jovens atinge seu ápice quando Travis e Johnny decidem se ausentar da escola – o que é terminantemente proibido – e passear pela cidade. Os dois entram em uma concessionária e fingem observar os modelos da loja, ao passo que Travis, de modo estupidamente fácil, rouba uma das motocicletas e pega a estrada com o amigo na garupa, afastando-se dos centros urbanos.  Após alguns instantes, Travis estaciona a moto e entra em uma lanchonete com Johnny. Eles pedem café, e Mick logo se vê atraído pela atendente do estabelecimento (Christine Noonan) e lhe rouba um beijo. A moça lhe dá um agressivo tapa como resposta. Mais tarde, ela procura Mick e volta a encará-lo, afirmando comportar-se como um tigre. O surpreendente é notar que o rapaz corresponde a essa selvageria nas mesmas proporções e o que se tem é uma incrível sequência de viés surrealista, na qual os dois se afundam em uma fúria sexual de autodestruição. 
      Enquanto isso, o terceiro membro do grupo, Wallace, envolve-se em um romance com Bobby Phillips (Rupert Webster), um dos meninos mais novos, embora ciente de todas as consequências que isso poderia acarretar. A homossexualidade é mais uma das polêmicas questões abordadas no filme e um dos principais tabus na Inglaterra na época – até meados de 1967, a sodomia era considerada crime por lá.  
    Com uma ótima fotografia, o filme é intercalado por cenas coloridas e em preto e branco, e seus momentos de transição encontram-se perfeitamente encaixados no contexto, conferindo-lhe maior valor estético e semântico: a primeira vez que Phillips e Wallace se viram após o treino de educação física, no ginásio esportivo, a luta de esgrima entre os três amigos, a cena incendiária entre Mick e a garota da lanchonete. Ela, a propósito, se une aos rapazes no combate armado à autoridade tirânica, que toma lugar após uma celebração realizada no colégio. O estopim para o ataque foram as severas surras que os três sofreram como penalidade em decorrência das últimas faltas cometidas. O festim irrompe-se em disparos, desesperado, furioso e sangrento. 




     A partir daí, constata-se o paradoxo presente na prática da revolução: se, a princípio, o anseio por liberdade, melhores condições de vida e um sistema de educação mais eficiente impulsionam mudanças, o processo de edificá-las carece de boa retórica e uma base ideológica sólida,  o que torna a imposição pela força o único caminho mais viável, ainda que primitivo. Desse modo, o grito de indignação não só não tem uma impressão prolongada como também acaba por igualar o grupo revolucionário ao despotismo do sistema vigente, um desafio à hesitação expressa pela condicional do título. 




      O resultado é um dos mais reconhecidos símbolos da rebeldia e da contracultura, o que faz de If ... um filme bastante competente, sendo eleito em 2004 pela publicação Total Film um dos maiores filmes britânicos de todos os tempos. 

     


terça-feira, 15 de janeiro de 2013

De outro planeta


   Space is Only Noise  (2011) é o disco de estreia do músico e compositor norte-americano Nicolas Jaar. Nascido em Nova York no ano de 1990, Jaar mudou-se com a família para a terra natal de seu pai, o Chile, aos dois anos de idade, e só retornou aos Estados Unidos seis anos mais tarde. Na Brown University, em Rhode Island, estudou literatura comparada e em 2009 fundou seu próprio selo musical, a Clown & Sunset.
   Classificando o próprio som como “blue-wave” (expresso por 100 BPM, diferentemente do Techno, o qual conta com 120 BPM) o som de Nicolas Jaar abarca influências que vão desde Ricardo Villalobos àquele que é considerado o pai da música ambiente, o compositor do século XIX Erik Satie, até o jazzista etíope Mulatu Astatke. Também já confessou em entrevista o amor pelas obras do mestre brasileiro Cartola, e confirmou sua presença no festival Sónar, esse ano, em São Paulo. 
   Apesar da pouca idade, o músico é responsável por um dos trabalhos mais engenhosos dos últimos anos. O álbum é uma invasão de vozes entrecortadas, declarações aleatórias multilíngues, ruídos que pipocam nos ouvidos, um piano apurado, solos de saxofone, ecos, enfim: uma autêntica miscelânea. Tudo com muita classe e requinte. 
   O marulhar das águas prestigia a introdução de “Etrê”, a primeira faixa, que, logo em seguida, emenda em “Colomb”. É por aí que se reconhece Jaar como um dos principais nomes da música minimalista atual, inaugurando uma sonoridade rica em sentidos. Note que aqui se aplica o conceito de "música ambiente" mencionado, sugerindo que a mesma é capaz de ocupar todo um recinto.  Em “Too Many Kids Finding Rain In The Dust”, é possível identificar o choque entre elementos clássicos e as batidas industriais e o prenúncio mais próximo até então de uma melodia, trazendo ganhos para ambos os lados. “Keep me There” mantém os graves nas vocalizações e os experimentalismos, como as risadas distorcidas e o sax intercalado na segunda metade da faixa. “I Got a Woman” herda a elegância do Jazz, desta vez eletrônico e aromatizado artificialmente, além de contar com samples do refrão da música homônima de Ray Charles e uma gravação da  leitura do poema “Pour Compte”, de Tristan Tzara, um dos precursores do Dadaísmo. 
   A faixa que originou o título do álbum, a lunar “Space is Only Noise if You Can See” apresenta um vocal calculadamente remixado e efeitos atordoantes que a tornam a investida mais Techno. A calma “Almost Fell” acorda as águas e prossegue nos chiados iniciais de fundo, tomada pelas reverberações de um agudo vocal. A ótima “Variations” é sucedida pelo bis de “Etrê”, fechamento de Space is Only Noise.  
   Esse disco faz parte da seleta horda digna da alcunha de “obra de arte”. Recomenda-se sua audição integral, sem interrupções, afinal, é uma experiência completa e única. Imagine-o em uma exposição em um museu de Arte moderna, emoldurado por matizes de preto, cinza e branco, que, mais do que quaisquer outras cores, cabem perfeitamente no tom deste primoroso trabalho. 


segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Deep thoughts


  Shallow Bed, lançado em 2012, é o debut  da banda inglesa de folk-rock Dry the River. Sua formação inclui cinco integrantes: Peter Liddle (vocal principal, guitarra), Matthew Taylor (vocais, guitarra, teclado), Scott Miller (baixo, percussão, vocais), Jon Warren (bateria e percussão) e Will Harvey (teclado, violino, viola e bandolim). Comparados aos seus conterrâneos do Mumford and Sons pelo jornal The Guardian, os rapazes já se apresentaram em grandes festivais pela Grã-Bretanha e até na edição norte-americana do Lollapalooza, no ano passado. 
   O disco proporciona um aprimoramento do folk-rock tradicional, com arranjos bem elaborados e desenvolvidos de modo pleno. Os vocais harmônicos remetem a uma aproximação aos corais característicos da música sacra, recurso que tem o objetivo de enfatizar o assunto tratado ao longo das 12 faixas que o compõem.  Há, em Shallow Bed, um louvável empenho em relação à criação das letras, o que o torna uma tentativa ainda insegura de um álbum-conceito, envolvendo certo grau de coesão.  
   À medida que o álbum é ouvido, percebem-se diversas referências à religião. Primeiramente, a capa traz a pintura de um peixe, um dos símbolos-mor do cristianismo. “Shield Your Eyes”, a terceira faixa, menciona o leão de Frígia – região visitada por Paulo de Tarso e Silas no livro Atos dos Apóstolos, da Bíblia, e que hoje corresponde à Turquia – e suas previsões quanto ao fim iminente de um relacionamento. “History Book” narra o dilema de um jovem que pretende seguir à risca os ensinamentos da doutrina cristã, mas que se entrega aos desejos sexuais. O fardo do pecado é, portanto, “tão pesado quanto um livro de História”.  
   “The Chambers and The Valves” continua a discorrer sobre esse amor juvenil. “Demons” reafirma a importância da luta contra o mal e emenda perfeitamente em “Bible Belt”, a partir da qual é possível traçar o panorama familiar que lhe serve de cenário – pais alcoólatras e filhos sem rumo, subjugados pela religião. Ao menos um eu-lírico pode ser identificado, assim como sua fuga de tudo aquilo que considera “raso” (como o título do disco anuncia).  A  melancólica “Weights and Measures” é sobre o amor tardiamente correspondido e as decepções que o seguem. O ciclo é encerrado com “Family Tree”, onde o filho que se desvirtuou é aconselhado a se juntar novamente à família, para que só assim a paz no lar se concretize. 
   Apoiando-se em uma estreia tão primorosa, o Dry the River entra em estúdio este mês para a gravação de seu próximo trabalho, até então sem previsão de lançamento. É só aguardar e apreciar.