terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Vida sem vida




   Existem inúmeras barreiras a serem transpostas na conversão de um livro em filme. Literatura e Cinema são artes distintas, logo, demandam a utilização de mídias diferenciadas a fim de que o conteúdo possa ser transmitido. Há cenas que não podem ser escritas e textos que não podem ser filmados. Alguns personagens são cortados, enquanto outros veem suas ações sendo transferidas para papéis de maior importância. As limitações originadas a partir desse inevitável (e nem sempre satisfatório) encontro geram uma adaptação cinematográfica que pode tanto potencializar o significado da obra literária quanto também empobrecê-lo. 



   A base em questão é o livro Trainspotting, do escritor escocês Irvine Welsh, levado às telonas em 1996 pelo cineasta cult Danny Boyle, responsável pelo premiado Quem Quer Ser um Milionário?, de 2008. Irreverente, sujo e polêmico, o romance conta a história de um grupo de amigos viciados em heroína que não veem sentido na vida regrada, previsível e repleta de obrigações que a maioria dos seres humanos almeja para si – “Choose us. Choose life. Choose mortgage payments; choose washing machines; choose cars (...)”. Como a edição brasileira, publicada pela Rocco, parecia estar com o estoque zerado nas livrarias, optei pelo original da Vintage. A vantagem de ler no idioma original é que a entendimento de determinadas palavras ou expressões não é comprometido por eventuais erros ou traduções precipitadas. De mais a mais, o processo de adaptação a outra língua é inerente à tradução, o que faz com que o texto se distancie das características do país onde foi escrito para acomodar a linguagem dos diversos locais onde ele será lido, ao redor do mundo. 

   Tive um pouco de receio a princípio ao constatar o uso indiscriminado que Welsh faz de gírias regionais, além da transcrição da pronúncia exata de cada palavra conforme o sotaque característico da Escócia, o que pode provocar certo estranhamento em um leitor menos acostumado. Sua escrita é estimulante e envolvente, e levar o livro do começo ao fim não é tarefa difícil. 
   Trainspotting  é composto por 7 partes, e cada uma delas contém um número variável de capítulos. Esses capítulos, por sua vez, são narrados por personagens diferentes que se alternam e, às vezes, por um narrador onisciente. As histórias podem ou não manter uma linearidade. 


   O protagonista é Mark Renton (no filme, interpretado por um ingênuo e vivaz  Ewan McGregor - sendo esta sua segunda parceria com Boyle desde Cova Rasa, de 1994). O foco principal se estabelece nas relações entre o jovem e o seu grupo de amigos, entre os quais foram contemplados com participações no longa, Sick Boy (Jonny Lee Miller), Spud (Ewen Bremner), Tommy (Kevin McKidd) e Begbie (Robert Carlyle). Para eles, a submersão no mundo das drogas é a única maneira de fugir ao paradigma do “cidadão comum”, ainda que deságue no destino – geralmente irreversível – da  autodestruição. Trata-se da década de 1990, os anos sombrios em que a Aids despontava como uma ameaça emergente, e o compartilhamento de agulhas multiplicava as chances de contaminação pelo vírus HIV. 

   As correspondências entre livro e filme são facilmente reconhecidas ao longo de uma hora e meia de projeção. A direção dinâmica de Boyle acrescenta cenas icônicas ao universo dessa relação, como a surreal viagem que Renton faz através do vaso sanitário do “Pior Banheiro da Escócia” em busca dos supositórios de ópio fornecidos por Mikey Forrester (o próprio autor, Irvine Welsh, em participação especial). Há ainda a sequência em que Mark se imagina dentro de um caixão e seu cortejo prossegue ao som de “Perfect Day”, de Lou Reed. Aliás, não faltam referências a astros do Rock, como Iggy Pop e David Bowie. O uso de estereótipos acerca do comportamento dos junkies não desgasta a temática abordada, tornando a película um dos mais competentes candidatos ao posto de “clássico moderno” – sem exageros. 



   Uma das marcas registradas dessa inesquecível turma é a frequente ida a bares e pubs , com brigas e discussões ocasionais, normalmente desencadeadas pelo encrenqueiro e asqueroso Begbie. Em uma dessas saídas, acompanhado de Spud, Mark Renton conhece Diane (Kelly Macdonald), uma colegial com quem inicia um caso. É interessante o grau de relevância que a personagem adquire no filme, já que no livro ela tinha sido relegada ao status de  “apenas mais uma garota” no círculo de relacionamentos do rapaz.  A duração do filme não foi suficiente para dar suporte ao desenvolvimento de mais personagens, que existem aos montes na obra de Welsh. Cada um deles é carismático em suas peculiaridades, o que torna quase real a convivência com o leitor. 




   Ao contrário do longa-metragem, o romance dedica maior atenção às crises familiares de Mark, como a morte de seus dois irmãos, com maior ênfase na de Billy, que até então servia ao exército. Embora o relacionamento dos dois não fosse dos mais exemplares, a dor de Mark se dá através de lacunas no pensamento e falhas na continuidade narrativa, com frases não concluídas. Ele procura permanecer frio e racional, avesso aos clichês que os parentes tanto apreciam cultivar após o falecimento do ente querido, desconstruindo a imagem representativa da pessoa em vida para dar lugar a uma figura idealizada, ilusória, enganosa. Ao longo do capítulo, Renton parece questionar: o quanto a morte é capaz de distorcer o legado de alguém?

   Alguns dos capítulos finais do livro concentram-se na visão de personagens coadjuvantes, que nem mesmo aparecem no filme, porém com ótimas histórias para contar. Uma lástima que nenhuma dela tenha tido a possibilidade de ser encaixada no roteiro. 
   A transformação que o protagonista sofre e que se concretiza ao final do livro/filme é um ponto crucial do enredo. A partir dela, Mark rompe com tudo aquilo que o estagnava e o prendia ao atraso (como a maioria de seus “amigos”, com exceção do quase inofensivo Spud), para dar início a uma nova vida, muito semelhante àquela que ele desprezava no começo. Essa escolha, que é mais uma questão de sensatez do que de moralidade, o leva a crer que a existência comum, antes tão repudiada e ridicularizada, não é tão sem sentido assim. 








sábado, 9 de fevereiro de 2013

Puro luxo


 
   Discordo de quem classifica o gênero musical de Lana Del Rey como indie. Ela pode perfeitamente ser considerada uma cantora pop. Afinal, o que faz um artista pertencer ao universo alternativo? Produzir um trabalho cuja estrutura não se enquadra nos padrões comerciais do mainstream? Dar um descanso a tantos ouvidos molestados pelas execuções incessantes dos hits indigestos que as rádios disponibilizam todos os dias? Contemplar um determinado grupo que precisa de suporte estético e cultural para enriquecer seu próprio estilo? E se esse artista se tornar extremamente conhecido fora desse círculo, ele deixará de ser alternativo?
   É difícil dizer. Na maioria dos casos, o êxito financeiro proporciona o amadurecimento técnico, que, por sua vez, facilita o entendimento da música por parte do grande público, tornando-a mais acessível para aqueles que não acompanharam a carreira da banda ou do(a) cantor(a) desde os primórdios. Ou então, utilizam-se ações de marketing para promover um nome até alçá-lo à posição de superstar  internacional. E é esse o caso que mais se adequa à realidade de Lana. 
   Nascida em junho de 1986 em Nova York  sob o nome de Elizabeth Woolridge Grant, a cantora teve seu nome artístico inspirado na combinação dos nomes da atriz Lana Turner (uma das mais bem pagas de Hollywood nas décadas de 1940 e 1950) e do carro Ford del Rey (suponho que seja o modelo que aparece ao fundo na fotografia de capa de Born to Die), detalhes essenciais para sua fabricação. A herdeira do milionário Robert Grant, entretanto, já havia investido na carreira musical, de modo não tão bem-sucedido, em 2010, com o lançamento digital do álbum de estúdio Lana Del Ray A.K.A. Lizzy Grant – com “a” mesmo em “Ray” – pela  gravadora independente 5 Points Records. O disco chegou a ser comercializado no iTunes, mas foi retirado depois de pouco tempo, já que o selo não tinha condições de promovê-lo. Dentre suas 13 faixas, inclui-se “Yayo”, que mais tarde seria regravada para preencher o repertório de Born to Die – The Paradise Edition. Após ter comprado os direitos, Lana admitiu ter interesse em relançar seu álbum “perdido” em breve. 
   Concebendo-se Born to Die como sua estreia oficial – esta sim, com o auxílio de uma grande gravadora – é possível chegar aos motivos que a transformaram em uma queridinha indie. A divulgação dos primeiros singles pelas rádios dos Estados Unidos e da Europa geravam uma expectativa crescente acerca do que viria dali em diante. “Video Games”, acompanhante das viagens de carro por ruas arborizadas e margeadas por resquícios de neve, é o equilíbrio perfeito entre uma letra bem escrita e uma bela orquestração. “Blue Jeans” evidencia as referências da jovem: final dos anos cinquenta e início dos anos sessenta, o cinema de Hollywood, especificamente James Dean, e ícones musicais como Elvis Presley e Nina Simone.  
   A faixa-título do álbum reforça as ótimas composições que a caracterizam, assim como seu alcance vocal e suas arriscadas mudanças das tonalidades graves para as mais agudas. Não creio que o mérito deva ser integralmente atribuído ao famigerado Auto-Tune. Com exceção da desastrosa performance no programa Saturday Night Live, comprometida devido ao nervosismo e à timidez, Lana Del Rey não costuma deixar a desejar ao vivo. 






   Com “Off to the Races”, é fácil imaginar o cenário opulento descrito em mais uma de suas criações, que contam com traços autobiográficos: a piscina de uma mansão cinematográfica de L.A., cigarros, drinks, cassinos, hotéis. É interessante também notar a evolução quanto ao culto à imagem: se, no início, seus clipes guardavam o suave sabor dos vídeos caseiros, a exemplo de “Video Games” e a primeira versão de “Blue Jeans”, agora, em “National Anthem”, passam a ser verdadeiras superproduções. A cantora se inspira em Marilyn Monroe ao recriar o famoso episódio no qual a atriz cantou “Parabéns pra Você” na comemoração do aniversário do então presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy, em 1962,no Madison Square Garden. "O dinheiro é o hino do sucesso", e só através dele há vida, luxos, sexo, excessos de álcool e drogas, morte. Ela não aparenta fazer esforço para se desvencilhar do estereótipo de garota rica e imoral.  É a partir daí que a pegada mais hip-hop ronda algumas das demais faixas, como “Dark Paradise”, “This Is What Makes Us Girls” e a adicional “Lolita” (equivocada leitura do romance de Nabokov), que parecem pertencer a um trabalho completamente diferente. É quase preocupante constatar a persistência de Lana nos arranjos orquestrais introdutórios, que deixam as músicas tão espontâneas quanto comerciais de bebida em locações paradisíacas. Isso fez com que seu nome fosse vinculado ao pop barroco, subgênero da música pop. Por outro lado, “Radio”, “Carmen” e “Million Dollar Man” (menção à Fiona Apple de Tidal) merecem destaque. 




   Já Born to Die – The Paradise Edition, seu mais recente disco, é um presente aos fãs, composto por 8 faixas inéditas. Aqui, ela revela mais segurança ao seguir uma linha melódica semelhante na maioria das canções. Eis que os elementos característicos são a cultura norte-americana, o espírito aventureiro de On The Road, homens mais velhos, rock’n’roll e sua interpretação para o clássico “Blue Velvet”. A polêmica “Cola” e seus dois primeiros versos flutuantes renderam a etiqueta “Parental Advisory: Explicit Content” no canto inferior direito da capa. A qualidade lírica, ainda que minimamente, parece ter sido relegada a segundo plano, porém,  resulta em faixas memoráveis, tais como “Ride”, “Body Eletric”, “Gods & Monsters” (por favor, não diga que você está vivendo como Jim Morrison) e “Bel Air” – o último resgate do vício das orquestrações artificiais de seu álbum anterior. 

   Acredito que Lana seja uma artista com potencial a ser desenvolvido e de ótimas influências  (Leonard Cohen, Janis Joplin e The Eagles são algumas delas) e escolhas sensatas. Pop, indie, alternativa ou não, espero que ela prossiga fazendo o que faz - de maneira ainda melhor.