domingo, 17 de março de 2013

Em suspensão


   2013 aos moldes de 1963. Esse é jeito mais sucinto (e, possivelmente, mais óbvio) de descrever o disco de estreia do holandês Jacco Gardner. Natural de uma cidade a 40 minutos ao norte de Amsterdam, Gardner define-se em seu site oficial como um “multi-instrumentista de pop barroco, responsável por criar um som único, derivado de combinações entre cravo, cordas, flautas e outros instrumentos clássicos com efeitos psicodélicos”. Tal perfil pode até soar pretensioso vindo de um rapaz de 24 anos cujo corte de cabelo é semelhante ao de Brian Jones. Mas há um vasto rol de influências que faz com que Cabinet of Curiosities seja o que é.
   Através de “Clear The Air”, a primeira faixa, o ouvinte é tragado para o interior de um caleidoscópio musical ambientado na fértil década de 1960. As técnicas de estúdio permeadas por camadas sonoras permitem a realização dessa agradável viagem a uma época que deu à luz a legítimos gênios da música, como Syd Barrett, Brian Wilson e Van Dyke Parks. A princípio, Gardner aparenta ser o resultado de uma mistura heterogênea de Beatles e Barrett (a lírica introspectiva de “The Ballad Of Little Jane”, faixa que encerra o álbum, e os graves vocais que remetem ao ex-líder do Pink Floyd servem para comprovar essa hipótese).
   A nostálgica “The One Eyed King” distingue-se de sua antecessora por conter uma singela melodia coroada por letras que acompanham a apatia da fog londrina – Sitting by the old road again. Waiting for a letter, for a friend. Batidas amortecidas por um baixo hipnótico introduzem “Puppets Dangling” que, em algum instante a partir do segundo refrão, adquire sonoridade similar a de “See-Saw”, do já mencionado grupo de Cambridge. Ou talvez seja só impressão. 
       É comum que ecos atuem como suporte aos vocais, conforme é verificado em “Watching The Moon”, a qual constrói um macabro carrossel sobre u m andamento regular. Gravações de risadas de bebês e um interessante arranjo para órgão povoam a faixa-título, um instrumental de quase três minutos de duração que soa como se viesse de debaixo da terra. 
       A maioria das músicas prestigia temas redundantes, de modo que Gardner não se desgasta em esforços para abandonar a zona de conforto delimitada pela abastada herança imaginativa do rock psicodélico. A finalização abrupta  de “Riddle” ameaça a onírica “Lullaby”. O trabalho logo começa a dar sinais de cansaço, e faixas que funcionariam muito bem em contextos independentes, como “Help Me Out” e “Summer’s Game”, parecem se arrastar.  
      Cabinet of Curiosities é um álbum enganado pelo tempo que, certamente, irá satisfazer os ouvidos de vários apreciadores das quimeras do circuito alternativo que, por um motivo ou outro, não desejam se perder em experimentalismos arriscados e inovações intimidadoras.




sábado, 2 de março de 2013

A efemeridade do tempo



   “História é aquela certeza fabricada no instante em que as imperfeições da memória se encontram com as falhas da documentação.”


   Tanto quanto a citação acima – atribuída a um autor fictício de nome Patrick Lagrange, pronunciada numa das passagens do livro – quanto a declaração de Tony Webster acerca do que difere a juventude da velhice – “(...) quando somos jovens, inventamos diferentes futuros para nós mesmos; quando somos velhos, inventamos diferentes passados para os outros.” – serviriam de epígrafe para esse sensível romance do britânico Julian Barnes, vencedor do Man Booker Prize de 2011. 
   O sentido de um fim é um tratado eloquente  sobre a fragilidade da memória, a perseverança de nossos ideais e o poder do tempo em nossas vidas. 
   Em cerca de 160 páginas, o personagem Anthony Webster conta a própria trajetória, desde o período escolar até a terceira idade. Divorciado, distante da filha e dos netos, careca e aposentado, descobre que a mãe de Veronica Ford, sua namorada na adolescência, acaba de falecer, deixando-lhe  uma herança simbólica no valor de 500 libras e um diário escrito por Adrian Finn, amigo dos tempos do colégio que cometera suicídio aos 22 anos.
   Todavia, a memória de Tony não é das melhores. Sua narrativa faz com que acontecimentos passados se mobilizem a fim de comportar opiniões e conceitos, em especial os que se referem à vida alheia. Em determinadas ocasiões, fatos surgem associados a imagens sensoriais, – o vapor que sobe quando uma frigideira quente é jogada dentro de uma pia molhada, um dos exemplos mais marcantes – que  aparentam ser muito mais consistentes e confiáveis do que a palavra dita – ou não dita.
   Anthony tenta, enquanto analisa a existência presente, reunir a sucessão de eventos que se inicia a partir do dia em que Adrian juntou-se a ele, Alex e Colin na sexta série. Seguem-se o ingresso na universidade, o primeiro contato com Veronica e o término do relacionamento, o namoro dela com Adrian, até a inesperada morte do amigo, ocorrida enquanto o protagonista viajava pelos Estados Unidos.
   Desde o princípio, ele destacara-se dos demais por estabelecer um tipo de contato muito mais complexo entre a interação que mantinha com outras pessoas e a realidade na qual vivia. Seus pensamentos fugiam ao senso comum. Finn era, de fato, muito mais inteligente do que Tony. Acima da média, em termos estatísticos. E é cruel constatar que a maioria de nós está condenada a fazer parte dela.
   Ao ser informado de que a mãe de sua ex-namorada havia lhe deixado o diário de Adrian, Tony dispõe-se a recuperá-lo. No entanto, ele não contava com o fato de que Veronica representaria um obstáculo implacável entre ele e o diário. Anthony fracassa inúmeras vezes na tentativa de decifrar a mulher que fora seu primeiro amor – e os sentimentos que ela procura esconder ao descuidar da aparência.
   O que se lê são profundos questionamentos que concernem o vazio existencial, a frustração de sonhos e planos que não se concretizam, a vida idealizada que fomos ensinados desde cedo a amar, a resposta que temos ao longo dos anos sob a forma de uma vida "automática" e a inevitável velhice, a "prova da sobrevivência". 
   O tempo, ora devastador, ora reparador, norteia todo o enredo, assim como refuta nossos julgamentos a respeito das decisões dos outros e deforma a compreensão que temos quanto a lances há muito ocorridos. A memória pode nos abandonar quando mais precisamos dela ou, quando não o faz, nos prega peças que muitas vezes não têm a menor graça.