sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

O lunático imortal


                                                           
"Sempre pensei em voltar àquele lugar onde você pode beber chá e sentar no tapete."
- Syd Barrett

   A genialidade de Syd Barrett é um bem simplesmente invejável. Fundador e primeiro líder do Pink Floyd, ele foi a principal fonte criativa durante as primeiras empreitadas do grupo ainda no universo underground da lisérgica Londres dos anos 1960. Contudo, seu intenso envolvimento com drogas e, por conseguinte, a incapacidade de cumprir com a agenda de compromissos o forçaram a abandonar a banda pouco depois da gravação de seu segundo álbum, A Saucerful of Secrets (1968), no qual os vocais de Barrett só podem ser ouvidos na última faixa – a fatídica “Jugband Blues”. Os dois versos finais da música – and what exactly is a dream?/ and what exactly is a joke? – são perturbadores tendo-se em vista os eventos em curso naquele momento, propriedade inerente aos que têm a habilidade de transformar a própria existência em arte. David Gilmour assumiria a voz e a guitarra principal dali para frente, enquanto Barrett se dedicaria à concepção de dois discos solo antes de renunciar definitivamente à vida pública e à outrora brilhante carreira musical. 

   De todos os integrantes da formação original do Pink Floyd, Barrett foi, de longe, o mais influenciado pelos Beatles, atributo registrado na estreia do grupo com o intrigante The Piper at the Gates of Dawn (1967), concluído nos lendários estúdios Abbey Road alguns meses antes do lançamento ofuscante de Sgt. Peppers Lonely Heart’s Club Band. Essa presença permanece em seus trabalhos solo e o efeito obtido é ainda mais incrível quando combinado  com as sensacionais letras compostas por ele. 



   Dentre esses dois álbuns, Barrett (1971) aparenta ser o mais consistente e preciso e, por tais razões, pode ser considerado ainda melhor do que o anterior, The Madcap Laughs (1970).  Nele, Syd Barrett atinge o ápice de sua inventividade, emplacando faixas empolgantes como “Baby Lemonade”, “Dominoes” – you and I, you and I and dominoes... A day goes by... – “Gigolo Aunt” e “Effervescing Elephant” – reciclada a partir de um poema escrito por Syd ainda na adolescência. 
   Ele não só foi um excepcional compositor como também um exímio contador de histórias. É possível constatar uma veia narrativa em várias de suas canções. O primeiro single do Floyd, “Arnold Layne” é um bom exemplo disso. Como não se lembrar do homem cujo hobby envolvia roubar roupas femininas dos varais da vizinhança? E da Emily, de “See Emily Play”? Até hoje não há um consenso a respeito da musa inspiradora de Syd, nem se ela existiu de fato. 
   Barrett inspirava-se também em histórias infantis para escrever canções, evocando um universo de sonho e fantasia que abrangesse uma música transcendental. O título do primeiro CD do Floyd foi retirado de um dos capítulos do livro O Vento nos Salgueiros, de Kenneth Grahame, apresentando animais antropomorfizados como personagens principais. 
   Hoje, há versões remasterizadas  tanto de The Madcap Laughs quanto de Barrett que contêm, respectivamente, seis e sete faixas bônus de takes alternativos para algumas músicas. Ao fundo, escuta-se com frequência orientações sendo dadas ao cantor no processo de gravação. Só para a gente se enlouquecer mais e mais com o puro, irretocável e irresistível sotaque britânico de Syd. 
   Encontrar o próprio lugar no mundo é um dos anseios mais fundamentais do ser humano. E ir até ele sempre que possível, sentir-se acolhido pelas estruturas que o fortificam, deitar-se próximo ao chão sem que se queira ir embora... Imagino como seria esse lugar para Syd e, decididamente, a xícara de chá e o tapete preparam o ambiente perfeito. E é a ele que Syd pertence. 



R.I.P
Roger Keith Barrett (1946-2006)



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